CAPÍTULO 1
TRIGÉSIMA-OITAVA DISSERTAÇÃO
Joel 1.1-4
1. Oráculo do Senhor que veio a Joel, filho de Petuel.
2. Ouvi isto, anciãos, e atentai vós, todos os habitantes da terra! Aconteceu isto em vossos dias? Ou nos dias de vossos pais?
3. Contai a vossos filhos, vossos filhos, a seus filhos, e estes à próxima geração!
4. O que o gafanhoto cortador deixou, o gafanhoto peregrino comeu; o que o gafanhoto peregrino deixou, o gafanhoto devastador comeu; o que o gafanhoto devastador deixou, o gafanhoto devorador comeu.
A palavra de Jeová que veio a Joel, o filho de Petuel. Ele aqui indica o nome de seu pai; por isso, é
provável que esse fosse um homem bem conhecido e de certa notoriedade. Porém, quem esse Petuel foi, todos hoje em dia ignoramos. E o que os hebreus sustentam como regra geral — que um profeta é especificado, sempre que o nome de seu pai é acrescido — parece-me frívolo; e vemos quão ousados são eles em inventar tais explicações. Quando nenhuma razão para algo lhes surge, inventam alguma fábula, asseverando ser verdade divina. Portanto, considerando que é do seu hábito brincarem assim, não tenho respeito algum pelo que é por eles estimado como regra. No entanto, é provável que, quando os Profetas são mencionados como havendo procedido desse ou daquele pai, este seja homem de alguma reputação. Ora, o que ele declarou, dizendo que entregava a palavra do Senhor, merece ser observado: pois revela que nada reivindicava para si, enquanto indivíduo, como se desejasse governar por seu próprio juízo, submetendo os outros a seus caprichos, mas que relata somente o que recebera do Senhor. E, visto que os Profetas não reclamavam autoridade alguma para si próprios, apenas que fielmente executavam o mister divinamente incumbido a eles, e entregavam, por assim dizer, de mão para mão o que o Senhor ordenava, podemos, destarte, ficar assegurados de que nenhuma doutrina humana deve ser admitida na Igreja. Por quê? Porque, quanto mais os homens confiam em si próprios, mais roubam da autoridade de No particularmente difícil versículo quatro optamos por reproduzir a tradução oferecida pela Nova Versão Internacional, por entendermos ser, se não a mais fiel, pelo menos a de mais fácil compreensão ao leitor comum. A dificuldade para se verter o trecho é evidenciada pelo fato de os editores da própria Bíblia de Jerusalém, numa medida extrema, optarem pela mera transliteração de três dos quatro termos hebraicos,apenas com “gafanhoto” em vernáculo. (N. do T.) Monergismo.com Comentário sobre Joel Deus. Esse prefácio deve pois ser notado, o qual quase todos os Profetas usam, a saber, que nada traziam de moto próprio ou segundo a própria opinião deles, mas que eram fiéis despenseiros da verdade a eles confiada por Deus. E diz-se ter sido a palavra para Joel: não que Deus pretendesse que apenas aquele fosse seu discípulo, mas porque depositava esse tesouro com ele, para que fosse seu ministro ao povo todo. Paulo
também fala a mesma coisa — que aos ministros do Evangelho foi confiada por Cristo a mensagem, ou em nome de Cristo, para reconciliar os homens a Deus, (2.ª aos Coríntios 5.20); e, em outra parte, ele diz: ‘Ele depositou conosco tal tesouro, como em vasos terrenos’, (2.ª aos Coríntios 4.7). Compreendemos agora por que Joel diz que a palavra do Senhor foi entregue a ele, não que fosse ele o único discípulo; mas, como era necessário um mestre, Joel, a quem o Senhor entregou tal ofício, foi escolhido. Então, deveras a palavra de Deus diz respeito a todos, indiscriminadamente; no entanto, é delegada aos Profetas e a outros mestres; pois são eles, por assim dizer, depositários (depositarii). Quanto ao verbo hyh, hayah, não há necessidade de filosofar de forma tão sagaz quanto Jerônimo: “Como foi o verbo do Senhor feito?” Pois temi ele que se dissesse que Cristo foi criado, visto ser esse o verbo do Senhor. Isto é insignificância das mais pueris. Contudo, não pôde ele de outro jeito livrar-se da dificuldade senão dizendo que se fala da palavra sendo criada com respeito ao homem a quem Deus se dirige, e não com respeito ao próprio Deus. Tudo isso, como provavelmente vós percebeis, é infantil, pois o Profeta apenas diz aqui que a palavra do Senhor foi-lhe enviada, ou seja, que o Senhor empregou-o como mensageiro dele a todo o povo. Mas, após haver revelado que era um apto ministro de Deus, estando equipado com a palavra divina, fala de forma autorizada, pois representava ele a pessoa de Deus. Vemos agora qual a autoridade legal que deve vigorar na Igreja, qual a que devemos obedecer sem discussão, qual a que devemos nos submeter. Então, essa autoridade só existe quando Deus mesmo fala pelos homens e o Espírito Santo os emprega como seus instrumentos. Pois o Profeta não apresenta nenhum título oco; ele não diz que é sumo sacerdote da tribo de Levi, da primeira ordem, ou da família de Aarão. Ele não afirma coisa tal, mas diz que a palavra de Deus foi-lhe depositada. Então, quem quer que exija ser ouvido na Igreja, tem que forçosamente provar que é verdadeiramente um pregador da palavra de Deus; e não deve trazer suas próprias invenções, nem misturar coisa alguma que provenha do parecer de sua carne com a palavra. CONTUDO, o Profeta vitupera os judeus por serem tão estúpidos a ponto de não considerarem que eram castigados pela mão de Deus, conquanto isso fosse bem patente. Sendo assim, em minha opinião, deturpam o sentido dado pelo Profeta aqueles que acham que os castigos que são aqui anunciados estavam, até então, suspensos; pois transferem tudo para um período futuro.4 Todavia, faço distinção entre essa reprimenda e as denúncias que vêm em seguida. Aqui, pois, o Profeta censura os judeus, que, havendo sido tão severamente castigados, não ganharam sabedoria; no entanto, até os tolos, quando a chibata é aplicada às suas costas, sabem que são punidos. Então, dado que os judeus eram tão estúpidos que, mesmo quando castigados não percebiam que tinham de se conciliar com Deus, com justeza o 4 Como em outros de seus escritos, vemos que Calvino tomou nesse comentário uma posição preterista sobre passagens que hoje em dia são tomadas como se referindo aos supostos “últimos dias”. Dessa forma, é estranho que até mesmo Reformados acusem os preteristas de heresia por crerem que muitas das passagens chamadas escatológicas já tiveram o seu cumprimento. (N. do E. português.) Profeta condena tal loucura. “Ouvi”, diz, “vós, velhos; dai ouvido, todos vós, habitantes da terra, e declarai isto a vossos filhos”. Porém, a reflexão sobre essa passagem, adiarei para amanhã.
ORAÇÃO
Conceda, Todo-Poderoso Deus, que, visto como quase o mundo inteiro afrouxa de modo tal as rédeas à licenciosidade que não hesita em desprezar ou considerar como de valor nenhum a tua sagrada palavra — Permita, ó Senhor, que mantenhamos reverência tal como a justamente devida a ela e a teus santos oráculos e sejamos assim movidos sempre que tu te dignares a te dirigir a nós, para que, estando devidamente humilhados, sejamos por fé alçados ao céu, e paulatinamente, por esperança, alcancemos aquela glória que até agora nos está oculta. E, ao mesmo tempo, de modo submisso, refreemo-nos para que façamos sabedoria nossa obedecer a ti e a realizar o teu serviço, até que nos recolhas em teu reino onde seremos participantes de tua glória, mediante Cristo nosso Senhor. Amém
CONTINUA...
JOEL 1.5
O Profeta acrescenta este versículo para exagerar; pois quando Deus vê os homens, ou rindo
insolentemente, ou não fazendo caso de seus juízos, troça deles; e tal método o Profeta ora adota. ‘Vós
bêbedos’, diz, ‘despertai, chorai e uivai’. Sobre o assunto em tela, ele, nessas palavras, fala àqueles que
voluntariamente tinham fechado seus olhos a juízos tão manifestos. Os judeus se haviam tornado
entorpecidos e se revestido, no modo de dizer, de dureza; era então necessário arrancá-los para a luz
como que pela força. Mas o Profeta interpela os ébrios pelo nome; e é provável que esse vício fosse então
mui comum entre o povo. Seja como for que tenha sido, o Profeta, ao mencionar esse caso, mostra, da
maneira mais convincente, que não havia pretexto para ignorar as coisas, e que os judeus não podiam
desculpar a indiferença deles caso não observassem com especial atenção; pois os muito bêbados, que se
tinham decaído do estado de homens, sentiam mesmo a calamidade, pois o vinho fora tirado de suas
bocas. E essa expressão do Profeta, despertai, deve ser notada; pois os beberrões, mesmo quando
despertos, estão adormecidos, gastando também grande parte do tempo no sono. O Profeta tinha isto em
vista, que os homens, ainda que não dotados de grande conhecimento, mas até destituídos de bom senso,
não mais podiam se bajular; pois os mui ébrios, que haviam de todo sufocado seus sentidos e, assim, se
tinham distanciado em suas mentes, todavia, percebiam sim o julgamento divino; mesmo que o
entorpecimento os mantivesse presos, não obstante, foram constrangidos a despertar diante de
semelhante punição. “O que então essa ignorância significa, quando não vedes que sois castigados pela
mão de Deus?”
Para o mesmo propósito são as palavras chorai e gemei. Os bêbados, contrariamente, entregam-se
à fuzarca, saciando-se intemperantemente; e nada é mais difícil do que fazê-los sentir tristeza; pois o
vinho faz com que seus sentidos ajam tão tolamente que riem das maiores calamidades. Porém, o Profeta
diz: Chorai e gemei, vós ébrios! O que pois os homens sóbrios deviam fazer? Ele então acrescenta: Tirado
é o vinho de vossa boca. Não diz, “O uso do vinho é retirado de vós”; mas diz, de vossa boca. Ainda que
não se deva pensar em vinhas, adegas ou taças, contudo, eles serão forçados, de bom grado ou não, a
sentirem o juízo de Deus em sua boca e em seus lábios. Isso é o que o Profeta quer dizer. Percebemos
então o quanto ele piora o que havia dito antes: e devemos lembrar que seu objetivo era envergonhar o
povo, o qual se tornara, assim, apáticos quanto aos julgamentos de Deus.
Quanto à palavra sysu, ‘asis, alguns vertem-na vinho novo. ssu, ‘asas é espremer; destarte
sysu, ‘asis é propriamente o vinho que é pisado no lagar. O vinho novo não é o que sai da garrafa, mas
que é extraído, por assim dizer, pela força. O Profeta, porém, não tenho dúvidas, inclui aqui, debaixo de
uma espécie, toda sorte de vinho. Continuemos.